19 janeiro, 2014

reminiscências I


    A realização de que a mente é algo incauto - um pouco como uma floresta entorpecida no tempo em que ainda era virgem e não produto acimentado de gerações de porcaria humana - é relativamente fascinante. As cartas que escrevemos em pele despida, com dedos trémulos do frio inexistencial, e a maneira como nos cansamos de por vezes percorrer os dedos pelas mesmas linhas e deixar as nossas impressões digitais nas mesmas coisas. Como quando tu me disseste, em meios suspiros e lágrimas mal apanhadas, que estavas farta de percorrer os teus dedos por entre as minhas linhas indefinidas, como quem me acusa de ser menos do que aquilo que haveria de ter sido - se bem que a culpa não é minha. E quando, meses depois de quase te ter apagado da minha mente, me presenteaste com uma carta de infindáveis palavras de lamento, quedei-me na expectativa que o meu coração se despedaçasse uma e outra vez, um ciclo vicioso que era traduzido com delicadeza.
    Agora, passados anos, com os dedos amarelecidos pela nicotina dos cigarros fumados copiosamente, depois de mais uns amores lançados para as ruas escurecidas de Paris numa noite de Verão, e finalmente, depois da morte da mulher com que me casei, ainda sinto o coração a estremecer perigosamente quando pego na carta quase desfeita pelo tempo e pela quantidade de vezes que peguei nela. Nem preciso de a abrir para saber o que nela vem escrito, nem preciso de fechar os olhos para te ver a escrevê-la.
    Começarias por preparar um chá de frutos silvestres, esperando pacientemente que a água aquecesse, olhos fechados e encostada ao balcão, a contar os minutos, enquanto cantarolavas uma música qualquer, talvez a Norwegian Wood, talvez simplesmente a fazer o compasso de uma obra de Tchaikovsky, enquanto a tua mente se refugia por breves instantes na nostalgia de quando ainda eras bailarina e um demi-plié era a liberdade da tua alma de menina com grandes aspirações que um súbdito acidente deitou por terra, mas mesmo assim permitias-te recordar esses tempos, mesmo que já tivesse 27 anos e o problema na perna tivesse piorado, impedindo-te assim de voltares a dançar. Imagino-te assim, a preparar o chá com delicadeza e graciosidade, a usar aquela chávena vermelho-escura que os teus pais te tinham dado no Natal, a única prenda que alguma vez recebeste deles ("toma, só temos isto para te dar" disseram eles naquele jantar, saindo pela porta fora logo depois, e ainda me lembro como me ensopaste a camisola com lágrimas amarguradas e ressentidas, e eu mais nada fiz do que te abraçar noite dentro, o jantar a ficar cada vez mais frio e a noite cada vez mais escura), a pegar nela com cuidado e a pousá-la na mesa da sala, com uma folha branca à tua frente e uma caneta ao lado, e sei que ficaste uns bons cinco minutos a olhar para o vazio; a deixar o chá arrefecer, a pensar nas palavras que irias depositar naquela brancura cálida da folha nua, como me irias contar aquilo que eu já sabia, como te irias desculpar. Sei que só começaste a escrever mal o chá estava meio sorvido e os pensamentos te devoravam a mente, quando já não havia mais nada em que pensar, e mesmo assim começaste a escrever vagarosamente, a desenhar as palavras com cuidado, não se fosse dar ao caso de uma sair de maneira que não querias. E sei que mal terminaste, releste a carta três vezes, e depois desses três vezes a enfiaste num envelope e foste a correr metê-la nos correios, com medo que perdesses a coragem de a mandar.
    Não, não preciso de desdobrar o papel frágil para me lembrar do que me escreveste, nem preciso de me lembrar como ignorei a carta durante uns tempos, até a necessidade ditar o contrário. E agora, depois de estes anos todos, ainda me sinto como me senti, o coração fragilizado, a abanar suspenso no limbo da sanidade. E, pela primeira vez desde que te foste embora, chorei amargas lágrimas, por tudo aquilo que não me permiti chorar neste últimos anos.

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