O tique-taque incerto do relógio ecoava pelas paredes do vestíbulo, contando os vagarosos minutos enquanto eles se arrastavam penosamente para horas. O tempo parecia viscoso, as horas a escorregarem pelas paredes brancas e a preencherem todo o espaço com um vazio irritante. Menos aquele tique-taque do relógio, que ecoava nos ouvidos mesmo estando o relógio parado há precisamente quatro dias, seis horas, trinta e quatro minutos e dois segundos, mais coisa menos coisa, contando que comecei a contar apenas a partir do momento em que tirei a última pilha e não quando ele parou, e nem mesmo quando o espetei contra a parede e o vi desfazer-se em pedaços de plástico barato ele deixou de contar os vagarosos minutos.
- Sabes que mais? Eu acho que o caralho do relógio ainda está a gozar com a minha cara. - comentei eu com a gata que se passeava pelo meio das minhas pernas, ignorando a minha súbita fúria para com um relógio. "É só o raio de um relógio, vê se te acalmas", disse aquela vozinha na minha mente, a sobrepor-se ao contínuo tique-taque. Era como se a minha pulsação tivesse sido substituída por aquele som, estando agora dentro de mim, fazendo tão parte de mim como qualquer outro órgão ou célula que eu tivesse, não me deixando sossegada.
E sei que se passaram exactamente quatro dias, seis horas, trinta e seis minutos e vinte segundos porque ando a contar as horas em que não prego olho; a privação de sono deixou-me neste estado semi-consciente, e o facto de ouvir o matraquear do relógio nos meus ouvidos é a única razão que me ocorre para não conseguir pregar olho. Não, não é só o som, mas a sensação de que este serve como um conta-gotas, que aos poucos e poucos, me vai enchendo com este sentimento de impotência - de medo, até - e me deixa congelada. É como ter um sussurro gelado a percorrer a pele, a passar os dedos levemente pela espinha com a suavidade de um amante, e a cortar-me a respiração com navalhadas de pânico que me enche o peito.
E agora, após quatro dias, sete horas, dois minutos e quarenta segundos, a minha mente entra a galope, enquanto a vozinha na minha cabeça se tenta sobrepor teimosamente a tudo o resto, enquanto o meu cérebro cansado tenta tirar alguma lógica do que se passa, a vozinha vai ficando mais forte, um alter-ego recentemente descoberto.
"O que vais fazer agora, míuda?"
Respondo com honestidade. Não sei o que fazer. Sinto-me a deslizar cada vez mais para a loucura, para os cantos que a minha mente não quer que eu percorra.
"Porquê essas persistência toda?" quase que imagino o sorriso de escarninho - a boca torcida num meio sorriso, puxada para o lado direito - e quase que oiço o suave "unf" que lhe saí das narinas, num tom de desinteresse, como se a sua paciência estivesse prestes a esgotar. A minha mente não consegue arranjar uma resposta; porquê a persistência? Mas que persistência? A minha, ou a do que quer que seja que não me abandona agora?
"As engrenagens não páram, e se uma está estragada, ninguém chora por ela, meu amor, simplesmente a substituem - és tão necessária para este mundo como uma pequena formiga obreira é para uma colónia inteira" - puxa uma cadeira e senta-se, as pernas cruzadas, consigo imaginá-la como se estivesse sentada comigo aqui, na mesa da cozinha, a beber o chá que preparei com as mãos trémulas - " e se não consegues entender isso, então não entendes estes mundo. E quem não entende isso, tende a não entender as leis pela qual o mundo se rege. Somos todos dispensáveis, apesar de todos lutarmos contra isso : lutamos contra o destino, contra o facto de sermos escravos e proclamamos a liberdade que não temos. Somos seres patéticos, que rebolam na própria imundice e enfiam a cabeça tanto pelo rabo acima que mal conseguem ver a merda em que estão atolados, mas continuamos orgulhosos e seguros de nós. Como a porra de umas formiguitas numa colónia. Tão fáceis de ser esmagadas e tão ignorantes desse facto, e tão ... persistentes. Porque é que têm de persistir tanto? Porque não podem desistir quando chega a vossa hora?
Aqui estava eu, sentada na minha própria cozinha, quatro dias, vinte e duas horas, quinze minutos e doze segundos após o dia em que o tempo persistia nos meus ouvidos, entranhando-se no meu ADN. Aquela voz - não, não era apenas voz, aquela pessoa - irritante na minha cabeça continuava a falar comigo, voz doce e malévola como uma cereja enorme, suculenta e podre. Sabíamos que nos faria mal, mas não podíamos deixar de morder. E a voz invadia-me como um veneno, e era esse o som que eu apenas conseguia ouvir : aquela voz e o relógio. Aquela maldita voz e aquele maldito relógio, durante horas a fio, até entorpecerem a minha mente, até eu deixar de sentir qualquer coisa sem ser o relógio na minha pulsação e a calma fria daquela voz.
"Vês como és muito mais feliz quando desistes? Como somos todos mais felizes quando a vida simplesmente segue o seu rumo?" . Vinte dias, trinta e sete horas, quarenta e dois minutos, onze segundos. Já não me levantava da cama - já não havia propósito disso. A última vez que me vira ao espelho, via um rosto cadavérico afundado em olheiras. Não me reconhecia. O desespero era o meu companheiro, as horas passavam cada vez mais devagar, cada vais mais lentamente. O corpo já não era corpo, já não era meu, sentia-me a entrar num vazio profundo, como um mar calmo. Quase que podia sentir cada fibra do meu corpo desprender-se do que eu sou, e ainda assim era como sonhar acordada, para depois voltar à realidade e sentir cada vez mais aquele desespero a apertar-me o peito. Talvez eu morra esmagada por este peso. O alívio que isso seria.
Quarenta e três dias, duas horas, vinte e três minutos e um segundo. Ouvi o matraquear do relógio tornar-se mais suave, como se de repente me começasse a afastar de onde o som era originário, ou se calhar o raio do relógio estava finalmente a ficar sem bateria. Estranhamente, senti-me amedrontada, a minha mente a tornar-se demasiado ampla, demasiado vazia, e nem a presença pesada daquele alter-ego me descansava. Ela sentiu ofim antes de eu me aperceber, e eu só conseguia perguntar a mim mesma se aquilo era a morte, finalmente.
"A morte é um prazer raramente obtido. A maioria das pessoas apenas deixa de existir, e chama-mos a isso de morte. Mas a morte começa no dia em que o tempo começa a regredir para nós; não é um estado final, mas vivemos a morte, dentro da vida. E estamos tão agrilhoados pela morte como estamos pelo tempo, pois estes são dois amantes inseparáveis, e um condiciona o outro, e ambos nos condicionam a nós. Nós somos a engrenagem, eles são os mestres que nos reparam e substituem. São os criadores que nos olham de cima, que observam a nossa colónia de formigas e decidem se a espezinharão de uma vez ou não. Ninguém gosta de engrenagens estragadas; ninguém quer formigas moribundas. Mas ninguém perdoa uma engrenagem estragada que teima em trabalhar e atrapalhar todo o sistema bem oleado que os mestres criam. É isso que tu és. Uma engrenagem teimosa. Mas admiro-me que tenhas resistido tanto tempo." - solta um suspiro, dócil, quase pesaroso. Não entendo, mas não o consigo dizer, não encontro as cordas vocais dentro da amálgama que é suposto ser eu. - "E admira-me que não te tenhas apercebido há mais tempo, demoraste quarenta e três dias, quatro horas, dois minutos e trinta e sete segundos para te aperceberes que os mestres já te substituíram, e que já não és nada neste quadro existencial, mas mesmo assim quiseste persistir. O tempo continuava a fluir em ti e tu agarravas-te a ele. Se bem que agora, não importa, pois não?"
Suspirei, um suspiro de alívio, de resignação, e finalmente percebi: o tique-taque irritante marcava a contagem dos dias que eu demorava em tentar perceber que já tinha morrido há quarenta e três dias, quatro horas, três minutos e quinze segundos. Não era mais nada do que uma anomalia no sistema, algo corrompido a tentar sobreviver num tempo que não era o seu: e quando vi as imagens desfragmentadas do meu corpo caído no vestíbulo, perto do relógio partido, e o sangue a encharcar o soalho e o tapete que a senhoria me tinha implorado que não sujasse, não senti nada mais do que um vazio ensurdecedor.
"O tempo é apenas a lembrança de que tudo acaba". Sorriso apagado, como o do gato de Chershire das histórias de Alice. Apenas aquela lembrança de voz. E o tempo acabou.
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