16 agosto, 2015

O sujeito que escondi



É difícil, num espectro totalmente hipotético, que se eu um dia escrevesse uma carta para mim mesma, que fosse uma carta que gostasse de ler. Mas acho que a primeira coisa que escreveria seria "depois de 20 anos, continuas a ser um buraco negro no meio de uma galáxia quase destruída". E acho que sorriria levemente, mesmo que me doesse afirmar isso, mas não tanto quanto doí sentir isso. 20 anos depois, olho para trás e continuo a percorrer o mesmo caminho que sempre acreditei que, a esta altura, já teria saído, porque já me doem os pés e eu por vezes tenho de me sentir nas bermas, sem saber se consigo caminhar mais. Saber que existem outros caminhos é a única coisa que me tem feito levantar; não estar sozinha também ajuda. Mas há momentos em que as palavras simplesmente já não aparecem e eu sinto-me muda - pior que muda, sinto-me menos do que o que gostaria de ser, e tenho de parar e respirar fundo outra vez. Agarro-me sempre às bermas do caminho que sigo porque não sei se conseguiria agarrar-me a algo mais.
Mas tudo para dizer que se um dia explicasse a alguém quem sou, ficaria num impasse. Provavelmente diria algo do género "oh, sou uma pessoa normal, nada de mais", e ficaria por aí, com tudo o resto a queimar-me na garganta, a ameaçar escorrer pelos lábios. Depois passaria o resto do dia e a noite em branco, a pensar se algum dia conseguirei sequer explicar a alguém quem sou. E por vezes dá vontade, dá vontade de simplesmente explodir e ter uma erupção de palavras a fugirem pela boca, mas em vez disso, escrevo mentalmente cartas a definir-me. A dizer a mim mesma quem sou, a balbuciar as poucas palavras para o papel, porque por vezes custa, nem todas as palavras são bonitas, e algumas cortam a pele. Tudo o que sou são memórias e remorsos e um redemoinho de emoções, todas emaranhadas numa mente demasiado activa, para uma vontade demasiado passiva. Nunca estarei pronta para escrever quem sou, mesmo que queira abrir o armário e deixar os esqueletos saírem, porque quem me dera que saíssem para assombrar o mundo, mas apenas me assombram a mim. Quando eles se transformam numa só pessoa, num só alter-ego que me sorri ao longe; e é para ti que escrevo, como se o simples facto de escrever me fosse tirar um peso de cima, o peso da tua existência. Como se já não soubesses o que penso, o que sinto, o que me arde no peito e o que me deixa sem ar. Acabas por ser tu que levas com tudo o que é meu que eu não gosto, que acho feio, que acho horrível, que acho que não mereço, e eu chego a ter pena de te dar esse fardo.
Nunca te dei a conhecer, mas também nunca te conseguirei esconder, não quando te mostras com os joelhos esfolados e as mãos a tremer, quando só me apetece abraçar-te enquanto choras, e enquanto eu me esforço para não chorar. Mas apenas mostro partes de ti, acenando-as enquanto tento construir uma imagem de mim - mostro um braço e espero que esse seja o meu braço, mas não é. E sempre me sinto mal quando arranco pedaços de ti para ver se encaixam nas minhas, mas se somos parte do mesmo, porque não seriam compatíveis? Simples, o facto de eu não querer mostrar-te faz com que nem consiga pegar nas tuas partes melhores e as exiba ao mundo.
És a paranóia que me persegue quando a minha mente não consegue trabalhar; és também a depressão, a ansiedade. És o caso que nunca foi clinicamente confirmado, mas que vai-me matando aos poucos por dentro, a toxicidade não baixa por eu me recusar a aceitá-la. És a sensibilidade que eu não quero ter, e depois tornaste-te uma espécie de frieza em lume brando, que eu não consigo aquecer, por muito que queira. És os anos que passei a tentar controlar tudo o que sinto, a raiva, os remorsos, a tristeza, tudo a moer-me por dentro, tudo que eu agora não consigo exteriorizar sem estar perto do abismo, a olhar-lhe nos olhos e a vê-lo olhar para mim. Por eu já não consigo falar nem escrever como quero, que perdi o dom de saber traduzir os meus sentimentos, e tu também és isso. És a falta de vontade, a inércia em que envolvo a minha vida. És os dias em que fico em casa, sem fazer nada, e os que escolho ficar em casa, sem nada para fazer. És também os dias em que mal me consigo levantar da cama, e o faço por rotina. Mas esse dia será sempre um mau dia, e há sempre lágrimas que querem escorrer. O sentimento de incapacidade, as amarras que sinto, a vontade de me libertar, mas não saber como, esta sensação de opressão tão grande que só me faz sentir mais oprimida, mais fechada, mais sem liberdade, és isso tudo. As noites passadas a chorar - noites e noites e noites -, as noites em branco em que pensei que ia ficar maluca, que a minha sanidade parecia escapar-se. Os momentos em que senti de mais, e queria não sentir nada, e os momentos em que nada senti, e tentei arranjar maneiras de sentir alguma coisa, porque não me sentia viva. Foste a vozinha que me sussurrou tantas vezes que tudo tem um fim, e que devia de ser naquela altura. Que nada importava, nada valia mais a pena, que o mundo continua a ser uma merda e tens razão, o mundo é merda. Mas também foste a voz que me ajudou a ultrapassar tudo, porque há sempre dias melhores, mais quentes, mais luminosos. A infância agridoce, todos os momentos tristes, felizes e os no meio também, és tudo.
Mas eu também sou como tu, um buraco negro dentro de outro, onde a luz não escapa. E custa ser quem sou, saber que és quem eu sou, mas custaria-me mais não ser ninguém, e isso já fui. E um dia contarei mais sobre quem és; sem medos, porque dar-me-ás a mão e sorrirás enquanto eu falo, mas não será tão cedo. Porque eu também sou a infelicidade que me assola, o ódio a olhar para o espelho, a frustração por ser quem sou, e como te aceito, se não me aceito? E se somos parte de um só, como aceitar que somos as duas parte do mesmo, não que se complementam, mas que se sobrepõem, que aumentam as falhas, as dores, as intensidades dos sentimentos, mas, por vezes, também o que de bom existe? Porque se absorvemos a luz à nossa volta, não seremos também feitas dela? Um dia falaremos sobre as coisas boas que temos - as que tu tens e as que eu tenho, e quem sabe, serão as mesmas -, porque elas estarão sempre lá. Mesmo que seja preciso ver todas as coisas más primeiro, será como encontrar um tesouro enterrado no fundo do oceano. E um dia, não te esconderei, e não me esconderei. Mas, passados 20 anos, esse dia ainda me parece algo longínquo, e nadar até à superfície é sempre a parte mais difícil depois de nadar até às profundidades.

28 março, 2015


A vida chega ao impasse em que já custa escrever. Mãos tropegas. Os dedos tremem e hesitam. Já nem se sabe se as palavras vão sair como um jorro de água ou se vão ficar estagnadas, sem qualquer possibilidade de virem a fluir novamente com as mesma mestria que uma vez já foi tida. A idade deveria aprimorar, mas a idade apenas fez com que o jeito se fosse perdendo, já não há prazer, já não há gosto, já não há orgulho naquilo que se escreve, naquilo que se deita para o papel. Só há frustração. As mãos na cabeça e os papeis espalhados pelo quarto, as folhas deixadas em branco, e a profunda tristeza de já nada existir da antiga glória. Há lágrimas espalhadas. A dor de perder algo de mim é excruciante, perder a minha identidade - não a perdi, deitei-a ao lixo, desprezei-a completamente - , e tudo aquilo que eu pensei manter-se constante. Não sei sobre que escreva. Nem sei se gosto ainda de escrever, de sentir a frustração de palavras feias escritas para tentar compensar o que não consigo dizer, a garganta apertada, as mãos que tocam ao de leve no teclado, com medo, sempre cheias de medo, como se ao soltar  uma palavra errada, nunca mais encontrarei o fio da minha meada.