23 julho, 2013

I - amor e uma cabana

   
     Havia coisas extraordinárias na vida, que se nos eram dadas sem estarmos à espera, mas aprendiamos a aceitar como algo que não voltaria a ser oferecido nesta vida, e que se não agarrassemos com as duas mãos, fugiriam como peixes escorregadios. E falo de peixes porque, durante a minha infância, o meu pai adorava a levar-me a pescar, pois era algo que lhe transmitia calma, serenidade, mesmo nos seus anos finais, quando o cancro que lhe assolou os pulmões roubava a vida a cada suspiro débil. Todos na família levamos isso como sendo o Destino, que ninguém sobrevive a uma vida de fumador compulsivo - se bem me lembro, 2 maços por dia, todos os dias, durante 20 anos - sem deixar mazelas, mas lembro-me de o ver, mirrado, com o rosto chupado, deitado abaixo pela agressividade da quimioterapia, e olhar para o rosto de sofrimento da minha mãe e prometer a mim mesmo que nunca me apaixonaria por ninguém, porque provavelmente não aguentaria o desespero de perder alguém a quem devotei todo o meu amor. Tinha 15 anos na altura, e já tinha fechado o meu coração, motivado pela dor da morte do meu pai e o desespero de ver a minha mãe afundar-se em medicamentos e depressões. "O amor não presta para nada" , resmunguei eu para mim mesmo durante anos a fio, e durante anos me mantive longe de tudo o que fosse uma relação estável: eu tinha o meu coração encerrado em muralhas, e nada mudaria isso. Ou, pelo menos, era isso que pensava.
      Já vos disse que a vida nos traz surpresas, e a minha surpresa começou, inesperadamente, e sem eu ter grande noção disso, quando fiz 20 anos e me foi dada uma cabana à beira de um rio no meio de umas montanhas, quase que isolada, quase sem se ouvir nada mais do que a Natureza a respirar suavemente nos meus ouvidos, e por momentos quase que senti a presença do meu falecido pai comigo, a pescar calmamente no meio do rio, sem marcas de cancro nem de mal nenhum que lhe possa ter aparecido. Apaixonei-me por aquela paisagem, pela vida que poderia ali levar, e pela primeira vez, a vida pareceu-me mais leve, mais doce de ser vivida, e talvez, pela primeira vez, pudesse abrir o meu coração. Não levem isto no sentido de que eu era um virgem qualquer, demasiado amedrontado para me aproximar do sexo feminino - até porque tive uma boa dose de casos -, mas pouco representaram para mim. Sexo casual, uma base de amizade, suprimir os desejos carnais de vez em quando e chegava-me. Eu fodia-as mas não as amava, por muiro do que eu pudesse dizer no calor do momento: tinha-me comprometido a não amar ninguém. 
      A cabana era algo saído de um filme, uma construção de madeira, não demasiado pequena, perfeita para uma pessoa poder viver confortávelmente, com direito a uma pequena cozinha rústica e uma lareira que aquecia quando o tempo ficava frio e húmido, aquecer os ossos enquanto se bebia um copo de whisky e se lia um romance qualquer que estava perdido nas prateleiras. Encontrava-se em boas condições, carinhosamente mantida pelo velho homem que afirmava ser um conhecido do meu pai. Trocamos dois dedos de conversa, mais por educação do que por qualquer necessidade de uma conversa entre dois completos desconhecidos, e mal me deu as chaves, arranjei a uma desculpa para escapar a um jantar com a sua família.
      - A minha mulher faz um empadão de chorar por mais, e tenho vinho aquecido! Estámos a festejar o facto de a minha filha mais nova ter voltado a casa, ela que foi para o entrangeiro estudar, tantas preocupações nos deu, mas entende, aqui ninguém consegue nada da vida e teve de ser! Havia de gostar dela, uma miúda tão bonita, pouco mais velha que você, haviam de se dar bem, venha conhecê-la, aposto que a minha mulher não se importa de colocar mais um lugar. 
      - Adoraria conhecer a sua mulher e a sua filha mais nova, mas estou exausto, a viagem foi longa, entende, e ainda tenho muito que fazer... - mas eles nem me deixou acabar, respondeu-do logo de uma maneira efusiva, enquanto me colocava a mão no ombro:
    - Mas nada, não diga isso, um bom jantar para recuperar as forças e todos os assuntos que tenha a tratar, trata amanhã, que ninguém morre por causa disso, certo?
    Não me deixou mais espaço para argumentos, e lá me levou com ele a reboque, por um estreiro caminho que levava a uma das únicas casas presentes nas redondezas, uma construção rústica e agradável, com um pequeno jardim na parte da frente, religiosamente bem tratado, salpicado de relva verde-esmeralda e flores de uma panóplia de cores surpreendente. Lembro-me de pensar como esta visão me fazia lembrar da minha pequena casa de infância, e o meu coração de gelo apertou-se ao lembrar-se da infância feliz, de quando ía pescar com o meu pai, de quando a família ainda estava saudável e unida, mas todas essas memórias dissiparam-se com o som da porta da frente a abrir-se.

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     O jantar correu da maneira mais calma possível, com alguma conversa de circunstância,  o passar da comida, mas da prometida companhia feminina da filha mais nova, não havia sinal, nem um sussurro. Não que me fizesse qualquer diferença, mas provavelmente o jantar teria ocorrido com muita mais suavidade se os progenitores não estivessem tensos de ansiedade, a olharem para a porta em espaços de tempo cronometrados. 
    - O avião atrasou-se provavelmente, e ela não tem hábito de andar com o telemóvel atrás, ou então não pode avisar, mas deve de estar já a chegar!
     E eu nada afirmava, apenas me mantinha calado, apenas abria a boca para enfiar garfadas de empadão e as mastigar, abanando ligeiramente a cabeça num sinal positivo, a dizer que sim, que compreendia, e nada mais fazia. 
      Nem ía o jantar a meio - ainda havia empadão na travessa e vinho quente a ser servido -, quando a porta se abre de rompante e um vulto aparece na soleira da porta, cabelos desgrenhados, e quando se chega à luz fraca da entrada, a cara estava pintada num suave vermelho, e a respiração vinha ofegante. A filha mais nova tinha vindo a correr, ansiosa para não perder o entusiasmante jantar. Enquanto os pais se levantavam para a cobrirem de abraços e afectos, recostei-me na cadeira, e observei-a promenorizadamente: era uma mulher jovem, 23 anos, no máximo, de estatura algo baixa (não teria mais de 1,65m) e delgada, longos cabelos ruivos, e sardas a mancharem a pele branca da cara de boneca de porcelana. Os olhos verdes eram emoldurados por umas pestanas claras e longas, e os seus gestos eram algo delicados, como se fosse demasiado frágil para fazer um gesto brusco. 
     Durante toda a minha vida, tinha visto a minha quota parte de mulheres: tinha-as visto loiras, morenas, e até umas ruivas falsas, mulheres bem constituídas, mulheres lindas até, tinha-as tido na minha cama e também nos bancos de trás do meu carro. Todas elas me tinham suscitado um enorme desejo sexual, mas nada mais. O que me atingiu quando vi aquela mulher foi algo que só consigo descrever como um extase: não foi só o desejo de a possuir ali, naquele momento, mas também a vontade que tive de ficar com ela. Não apenas o de satisfazer o desejo carnal, mas o desejo que tinha ignorado durante todo este tempo, o desejo de um amor, de uma mulher que pudesse chamar de minha. E quando os olhos dela encontraram os meus, olhos que por um momento se manisfestaram admirados com a intensidade com que os meus a olhavam, passaram a mostrar-se compreensivos, a ligação a criar-se, os corpos em electricidade a pedir para se tornaram num só. Esse momento, para mim, foi mágico, algo que na minha vida toda nunca senti, nem nunca esperava sentir. O resto do jantar passou sem que nada fosse deixado no meu pobre cérebro, apenas me lembro de termos sido apresentados um ao outro - e o nome dela era Evelyn, e eu suspirei-o como um tolo apaixonado - e de ter a noção que ela estava a poucos centímetros de mim, mesmo no lugar há minha frente na mesa, a comer com a delicadeza de uma princesa, recatada, respondendo timidamente às perguntas dos pais, mas os olhos dardejavam na minha direcção, por vezes mordia o lábio, e a uma certa altura senti um pé a afagar-me a barriga da perna, debaixo da mesa - seguido por um malicioso sorriso. Quando já não havia mais por onde aguentar, já farto da tortura que aquele jantar se me representava, quando finalmente me despedi daquela família sorridente, quando mal aguentei dar apenas dois beijos de leve naquelas faces suaves, quando só me apetecia correr até casa, saí pela porta fora e, com os pensamentos num turbilhão, percorri o caminho de pedras que me levaria até à cabana. Que faria agora? Não podia ignorar aquela presença, aquela vontade, aquele sentimento, e raios me partam, nunca fui destas coisas, mas agora o meu coração galopava como um garanhão a correr sem descanso, era como querer possuir um fruto que me era proibido. Tão mergulhado estava eu nos meus pensamentos, que nem me apercebi que alguém vinha atrás de mim.
      - Não te importas que te acompanhe até casa, pois não? - virei-me, e aqueles espantosos olhos verdes olhavam-me, avaliavam-me. Acenei, fazendo um meio sorriso, e continuamos a andar.

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      A pele dela sabia a pêssegos com mel, tão doce que quase me derreteu, e era suave ao toque, esticada onde os ossos se sobressaiam, e era tão branca que quase se confundia com a cores dos meus lençóis. Estavamos ambos ofegantes, cobertos por uma transpiração bem merecida e bem apetecida, ela encostada ao meu peito moreno, o contraste era algo divertido, e riamo-nos agradavelmente de uma ou outra piada que nos lembrassemos, no meio de carícias e mimos. Ela tirou um maço de tabaco da mala - coisa que me incomodou, mas não refilei sequer - e fumou um cigarro com um notável agrado, enquanto me contava pequenos promenores da sua curta vida, e eu ouvia com deleite, ávido por saber mais dela. 
      Eram 4 da manhã e estavamos em silêncio, ela a acariciar o meu peito, eu a percorrer levemente o bícep pouco definido do braço nu dela, a pensar que finalmente a vida me tinha dado algo a que me agarrar, que finalmente poderia amar sem ter medo de ser destruído como uma simples jarra de vidro sem utilidade, a pensar em como fariamos uma família feliz, se calhar arranjavamos uma casa grande, e como teriamos três filhos, no mínimo um rapaz, para lhe poder ensinar a pescar, como meu pai me fazia quando era pequeno, e delineava já um futuro pintado a tons de felicidade, quando a ouvi suspirar:
     - Espero que o Richard nunca venha a descobrir isto.
    Gelei totalmente. No espaço de um nanossegundo, todas as fantasias felizes que tive dissiparam-se, dando lugar a um zumbido desagradável na minha cabeça.
     - Ahm, o Richard?
     - Sim, o meu noivo. - respondeu ela, num tom enfadado, enquanto se inclinava para procurar outro cigarro.
     - Não me contaste que tinhas um noivo. - ela virou-se para mim, erguendo uma das sobrancelhas, para depois sorrir.
     - Bom, creio que agora já sabes, não é?
     Não consigo explicar corretamente o que senti naquela altura: o desprezo dela por me ter escondido aquela informação, fazia-me entender que não valia a pena acalentar esperanças de ficar com ela. Eu era apenas um caso, um caso como muitas das mulheres com que estive foram, e nesse momento algo quebrou-se dentro de mim: algo rompeu o fio que ligava o meu cérebro à sua Humanidade, e libertou toda a raiva e dor e ódio que eu tinha, tornando-me um ser friamente racional. Sabem aquela máxima de "se não és minha, não és de ninguém"? Digamos que me diverti muito em aplicá-la.

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      Passados 10 anos, apenas vos posso dizer que já não vivo naquela cabana: e como poderia, depois de a ter manchado com o sangue daquela jovem mulher? Não fui cruel, apenas fui um tolo apaixonado que não aguentou a dor de ser rejeitado e teve de fazer algo para se poupar à loucura. Não me orgulho do que fiz, mas não faria nada de maneira diferente.
     A polícia demorou uns bons 10 dias para descobrir o corpo no rio e retirá-lo, para permitir aos pais darem-lhe um funeral apropriado. O caso foi encerrado, classificado como um assalto que correu mal, algo raro naquelas paragens, mas não de todo impossível.  E eu? Bem, eu apresentei-me no funeral. Dei os meus pêsames, rezei pela alma dela na missa que fizeram, e saí da cabana, alegando que não queria viver num lugar onde crime tão hediondo tinha ocorrido.
    Passados 10 anos, não amei mais nenhuma mulher, apesar de me ter casado e ter agora dois filhos, um rapaz saudável e uma doce menina. Não amo a mulher que agora dorme ao meu lado na cama, com o seu rosto banal, os seus cabelos castanhos sem brilho e as suas preocupações de mãe. O meu amor morreu naquela cabana, 10 anos atrás. Eu apenas tentei fazer algo da minha vida.

FIM

5 comentários:

  1. E eu a esperar daqui uma história de amor inebriante e sai-me esta maravilha! A sério que me surpreendeu pela positiva. Esperei outro desfecho assim que comecei a ler e por isso mereces os parabéns por teres feito algo diferente :)Gostei muito!
    Beijinho

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  2. Bem... não estava nada à espera... Muito bom!

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  3. Não estava NADA à espera deste Fim. Escreve um livro, por favor!

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  4. É sempre quando uma história nos surpreende. Principalmente uma história de amor sem qualquer cliché.

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