04 julho, 2013

introspeção noturna, devaneios da madrugada.



Queimam-se-me as pestanas em noites destas; espero que o sol nasça, por medo da noite, e do que ela advém. Sou pessoa com muitos demónios para exorcizar, mas por vezes ainda sou criança com medo do escuro e escondo-me debaixo das cobertas. Ninguém me vê, ninguém me toca. Ou então permaneço com a luz ligada, a contar as horas para o nascer do sol e puder finalmente subir a persianas e adormecer. Queimam-se-me as pernas com o calor corrosivo de um portátil plantado e quase colado à pele. Tenho banda sonora de trinado de pássaros, uivos de lobos e por vezes uma ou outra alma perdida que desconhece que a noite é apenas para aqueles que a cabeça – ou o coração – não deixam dormir. Refletir sobre a vida faz-se de noite, quando esta abranda, slow motion de um filme em tempo real, dá tempo para pôr pensamentos em turbilhão e remoer tudo o que posso existir dentro do córtex cerebral. Chega-se a um estado quase semelhante ao Nirvana, o sono apaga tudo, mantém-se a cabeça limpa e apenas o corpo trabalha: os dedos, os dedos a martelarem no teclado, e os olhos a lutarem para não se fecharem. Quase que oiço o meu cérebro a implorar por descanso, “Vai dormir Sofia”, não vou nada que ainda são cinco e meia da manhã e eu quero que o sol chegue primeiro que o meu sono. A natureza é desperta durante as horas frescas da madrugada, como uma canção de embalar, neste momento é tudo uma canção de embalar e até eu me embalo com nada menos que simples pensamentos. Há sempre uma doce exaustão que recompensa ficar acordada pela noite dentro; um sentimento de sobrevivência infantil que diz que ainda aqui estou, nada me apanhou, nada de monstros debaixo da cama, os dentro da cabeça estão a rédea curta, não me preocupo com esses. Três da manhã é uma hora como qualquer outra para meter a conversa em dia, mesmo que agora quase que nem me lembre do que falei, ou se sequer falei de algo que se aproveite. Sei que me revoltei contra tudo e todos, como faço sempre, mania de ser do contra, tenho de aprender a estar calada, mas se me calo depois ainda entupo uma veia ou algo pior. Apenas consigo sentir-me demasiado ofendida por viver numa época em que as pessoas usam apenas um décimo dos neurónios que têm – não sei se é porque se esquecem que têm mais, se queimaram os outros, se o raio que as parta – e que, para puxarem pelas engrenagens, precisam de um pontapé especial no rabo e, quem sabe, um abanão daqueles enormes. Perdi-me já no que escrevia, perdi o fio condutor, lembrei-me de olhar pela janela e o céu clareou para um tom de azul carregado delicioso.  Estou mesmo exausta, o meu cérebro quase que se arrasta, quase que o sinto a pedir por favor para eu parar. Mas eu não quero parar, quero escrever, estes momentos de vontade doida de apenas escrever, nem que seja palavras soltas, frases sem nexo, mas desde que preencha espaços em branco, tudo bem, por mim, tudo bem. Chamo a isto uma introspeção noturna: e como tema tenho a dizer que sinto a falta da Escrita. Já lá vão uns anos desde que escrevi algo que fosse uma história minimamente original e bem escrito – modéstia à parte, tenho a noção de que consigo escrever bastante bem, quando calha o engenho e a arte – e ainda me admiro como é que alguém com os seus 14/15 anos conseguiu puxar da manga textos com um tom de negro obscuro tão deliciosamente macabros. E, mais tarde, como é que uma criança de 15/16 anos conseguia escrever textos sobre mágoas e perdas e corações partidos. Eu acho que o meu partiu-se quando nasci: gritei ao mundo e o mundo apenas deu-me um encolher de ombros sarcástico, foi o suficiente para me destruir. Por vezes penso se não nasci com uma alma demasiado velha para um corpo tão novo – vivi mil vidas, viverei mais mil -, e pergunto-me se não nasci numa realidade que não foi adequada a mim. Ou então, não me adequei à realidade. Ou abrir um parêntesis imaginário para refletir sobre os curtos quase-18 anos de vida que resolvi viver até agora: sei que metade deles foi mergulhado numa depressão auto-induzida por uma personalidade híper-sensível e sem as defesas adequadas, sei que criei máscaras e todas elas caíram, e eu refiz, adequei-as a um novo temperamento explosivo, sensível ao toque, sensível às palavras, protegida pelo humor corrosivo do sarcasmo e da ironia. Gelei até aos ossos, que as pessoas frias criam-se, não nascem assim, e fria ficarei até um dia acreditar que é seguro o suficiente deixar de o ser. Por vezes gostava de ter nascido com a mente fechada, feliz na ignorância e no não saber o que é pensar até à exaustão – as parecenças com Fernando Pessoa tornam-se assustadoras por vezes, um dia já nem sei se sou ortónimo ou heterónimo -, já passei noite em branco afogada em pensamentos, em palavras, e lágrimas até, uma ou outra vez fez-se sangue e as marcas ainda cá estão. Não quero palavras de pena, não quero que me levantem estátuas e me chamem heroína, não quero drogas que me matem a infelicidade, nem drogas que a façam pior. Deixem-me fazer arte do meu caos, um dia podem-me agradecer. Parte de mim ainda mantém a pureza fresca de uma idealista sonhadora presa em mundos de imaginação, parte de mim será sempre criança, será sempre ingénua no amor, na vida, no mundo. Nasci escritora, e ainda bem, morrerei escritora, posso ser escritora escondida nos cantos da casa, manuscritos e cartas enfiados em gavetas, perdidos, e eu morrerei feliz porque escreverei sempre com o mesmo amor que uma mãe dá a um filho. Não conheci amor maior do que tenho agora por um dom que é saber escrever – e escrever bem, e gostar daquilo que se escreve. Não tenho amor maior que tenho pela minha mente caótica, que me proporciona mundos e fundos. Não, de momento, não tenho amor maior do que saber que serei eterna desde que algumas palavras minhas fiquem cá, mesmo que enterradas algures. Essa ideia dá-me uma certa paz, um certo calor no centro do peito. E agora, seis da manhã feitas, sol a nascer glorioso, e finalmente posso dormir, os monstros foram-se embora, os fantasmas também, os esqueletos voltaram para o armário e eu estou, finalmente, livre para adormecer assim que fechar os olhos, e sei que terei sonhos apáticos; não sonharei com nada.

2 comentários:

  1. Tenho uma amiga parecida contigo, no carácter explosivo, na vocação para a escrita, no tom também, obscuro como o teu. Eu faço 29 anos este ano, ela fez trinta, já é doutorada, eu nem licenciado sou. Estar com ela para mim é como ir ao estrangeiro, vocês são tão diferentes de mim, que sou tão certinho... Eu nunca diria como tu: "Não tenho amor maior que tenho pela minha mente caótica"; eu quero ordem e transparência e luz na minha mente. Não sou menos obsessivo do que vocês. Só os monstros amam os monstros.

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  2. Ela com 18 já era extraordinária.
    Tu também és. Não é um elogio. Há o comum, há o incomum, tu és incomum.
    Apetece-me dizer-te para não abusares de ti, mas creio não ter efeitos nenhuns.
    Abraço

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