Queimam-se-me as pestanas em
noites destas; espero que o sol nasça, por medo da noite, e do que ela advém.
Sou pessoa com muitos demónios para exorcizar, mas por vezes ainda sou criança
com medo do escuro e escondo-me debaixo das cobertas. Ninguém me vê, ninguém me
toca. Ou então permaneço com a luz ligada, a contar as horas para o nascer do
sol e puder finalmente subir a persianas e adormecer. Queimam-se-me as pernas
com o calor corrosivo de um portátil plantado e quase colado à pele. Tenho
banda sonora de trinado de pássaros, uivos de lobos e por vezes uma ou outra
alma perdida que desconhece que a noite é apenas para aqueles que a cabeça – ou
o coração – não deixam dormir. Refletir sobre a vida faz-se de noite, quando
esta abranda, slow motion de um filme
em tempo real, dá tempo para pôr pensamentos em turbilhão e remoer tudo o que
posso existir dentro do córtex cerebral. Chega-se a um estado quase semelhante
ao Nirvana, o sono apaga tudo, mantém-se a cabeça limpa e apenas o corpo
trabalha: os dedos, os dedos a martelarem no teclado, e os olhos a lutarem para
não se fecharem. Quase que oiço o meu cérebro a implorar por descanso, “Vai dormir Sofia”, não vou nada que
ainda são cinco e meia da manhã e eu quero que o sol chegue primeiro que o meu
sono. A natureza é desperta durante as horas frescas da madrugada, como uma
canção de embalar, neste momento é tudo uma canção de embalar e até eu me
embalo com nada menos que simples pensamentos. Há sempre uma doce exaustão que
recompensa ficar acordada pela noite dentro; um sentimento de sobrevivência
infantil que diz que ainda aqui estou, nada me apanhou, nada de monstros
debaixo da cama, os dentro da cabeça estão a rédea curta, não me preocupo com
esses. Três da manhã é uma hora como qualquer outra para meter a conversa em
dia, mesmo que agora quase que nem me lembre do que falei, ou se sequer falei
de algo que se aproveite. Sei que me revoltei contra tudo e todos, como faço
sempre, mania de ser do contra, tenho de aprender a estar calada, mas se me
calo depois ainda entupo uma veia ou algo pior. Apenas consigo sentir-me
demasiado ofendida por viver numa época em que as pessoas usam apenas um décimo
dos neurónios que têm – não sei se é porque se esquecem que têm mais, se
queimaram os outros, se o raio que as parta – e que, para puxarem pelas
engrenagens, precisam de um pontapé especial no rabo e, quem sabe, um abanão
daqueles enormes. Perdi-me já no que escrevia, perdi o fio condutor, lembrei-me
de olhar pela janela e o céu clareou para um tom de azul carregado delicioso. Estou mesmo exausta, o meu cérebro quase que
se arrasta, quase que o sinto a pedir por favor para eu parar. Mas eu não quero
parar, quero escrever, estes momentos de vontade doida de apenas escrever, nem
que seja palavras soltas, frases sem nexo, mas desde que preencha espaços em
branco, tudo bem, por mim, tudo bem. Chamo a isto uma introspeção noturna: e
como tema tenho a dizer que sinto a falta da Escrita. Já lá vão uns anos desde
que escrevi algo que fosse uma história minimamente original e bem escrito –
modéstia à parte, tenho a noção de que consigo escrever bastante bem, quando
calha o engenho e a arte – e ainda me admiro como é que alguém com os seus
14/15 anos conseguiu puxar da manga textos com um tom de negro obscuro tão
deliciosamente macabros. E, mais tarde, como é que uma criança de 15/16 anos
conseguia escrever textos sobre mágoas e perdas e corações partidos. Eu acho
que o meu partiu-se quando nasci: gritei ao mundo e o mundo apenas deu-me um
encolher de ombros sarcástico, foi o suficiente para me destruir. Por vezes
penso se não nasci com uma alma demasiado velha para um corpo tão novo – vivi
mil vidas, viverei mais mil -, e pergunto-me se não nasci numa realidade que
não foi adequada a mim. Ou então, não me adequei à realidade. Ou abrir um
parêntesis imaginário para refletir sobre os curtos quase-18 anos de vida que
resolvi viver até agora: sei que metade deles foi mergulhado numa depressão
auto-induzida por uma personalidade híper-sensível e sem as defesas adequadas,
sei que criei máscaras e todas elas caíram, e eu refiz, adequei-as a um novo
temperamento explosivo, sensível ao toque, sensível às palavras, protegida pelo
humor corrosivo do sarcasmo e da ironia. Gelei até aos ossos, que as pessoas
frias criam-se, não nascem assim, e fria ficarei até um dia acreditar que é
seguro o suficiente deixar de o ser. Por vezes gostava de ter nascido com a
mente fechada, feliz na ignorância e no não saber o que é pensar até à exaustão
– as parecenças com Fernando Pessoa tornam-se assustadoras por vezes, um dia já
nem sei se sou ortónimo ou heterónimo -, já passei noite em branco afogada em
pensamentos, em palavras, e lágrimas até, uma ou outra vez fez-se sangue e as
marcas ainda cá estão. Não quero palavras de pena, não quero que me levantem
estátuas e me chamem heroína, não quero drogas que me matem a infelicidade, nem
drogas que a façam pior. Deixem-me fazer arte do meu caos, um dia podem-me
agradecer. Parte de mim ainda mantém a pureza fresca de uma idealista sonhadora
presa em mundos de imaginação, parte de mim será sempre criança, será sempre
ingénua no amor, na vida, no mundo. Nasci escritora, e ainda bem, morrerei
escritora, posso ser escritora escondida nos cantos da casa, manuscritos e
cartas enfiados em gavetas, perdidos, e eu morrerei feliz porque escreverei
sempre com o mesmo amor que uma mãe dá a um filho. Não conheci amor maior do
que tenho agora por um dom que é saber escrever – e escrever bem, e gostar
daquilo que se escreve. Não tenho amor maior que tenho pela minha mente
caótica, que me proporciona mundos e fundos. Não, de momento, não tenho amor
maior do que saber que serei eterna desde que algumas palavras minhas fiquem
cá, mesmo que enterradas algures. Essa ideia dá-me uma certa paz, um certo
calor no centro do peito. E agora, seis da manhã feitas, sol a nascer glorioso,
e finalmente posso dormir, os monstros foram-se embora, os fantasmas também, os
esqueletos voltaram para o armário e eu estou, finalmente, livre para adormecer
assim que fechar os olhos, e sei que terei sonhos apáticos; não sonharei com
nada.
Tenho uma amiga parecida contigo, no carácter explosivo, na vocação para a escrita, no tom também, obscuro como o teu. Eu faço 29 anos este ano, ela fez trinta, já é doutorada, eu nem licenciado sou. Estar com ela para mim é como ir ao estrangeiro, vocês são tão diferentes de mim, que sou tão certinho... Eu nunca diria como tu: "Não tenho amor maior que tenho pela minha mente caótica"; eu quero ordem e transparência e luz na minha mente. Não sou menos obsessivo do que vocês. Só os monstros amam os monstros.
ResponderEliminarEla com 18 já era extraordinária.
ResponderEliminarTu também és. Não é um elogio. Há o comum, há o incomum, tu és incomum.
Apetece-me dizer-te para não abusares de ti, mas creio não ter efeitos nenhuns.
Abraço